Publicação: Revista Correio APPOA. Vol. 12nº 3abril/2025Escritas do Litoral - Homens que lêem e escrevem mulheres
- Fabricio Vijales
- há 5 dias
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No ano de 2024, iniciei um percurso no grupo temático Psicanálise e Literatura1, da APPOA. Durante meu trânsito no grupo, com as leituras, as interlocuções e as associações que surgiram nos encontros, inicialmente ocupei-me com assuntos relacionados à temática de alguns escritores e escritoras que abordam a loucura, o amor e a morte. Me fiz a seguinte pergunta: o que é a escrita de mulheres?
Minha inscrição se mobiliza pela curiosidade em explorar as possíveis articulações entre Psicanálise e Literatura, no ponto em que elas se cruzam, diante de seus desafios, quer seja na forma interpretativa, na da produção literária, nos debates, e na leitura das complexas dinâmicas que permeiam as representações e a história da escrita de homens e de mulheres.
Talvez seja importante ressaltar que este ensaio reflete o que recolhi nos encontros e nas trocas com as colegas, delimitando, assim, o recorte que fiz: homens que lêem e escrevem mulheres, marcando também a minha posição diante deste tema. Nesse processo, a escrita e a leitura não foram apenas um simples ato de decodificação, mas, sim, experiências com os textos literários - especialmente no que diz respeito ao feminino.
Após um primeiro contato com os contos de Horácio Quiroga, escritor uruguaio influenciado por Edgar Allan Poe, cuja vida é marcada pela tragédia, e também com os livros de Conceição Evaristo, escritora escolhida para integrar as leituras do grupo, me aventurei em elaborar um exercício de escrita literária. Permitindo-me questionar e tensionar por este texto que escrevi, no processo de elaboração e de reflexão, busquei, com este trabalho, explorar possíveis chaves de leitura que indicam acessos à escrita e à leitura de mulheres por homens, percorrendo perspectivas pouco exploradas e desafiadoras.
Em síntese, no conto escrevi a história de uma mulher indígena da tribo Yaraí, nome escolhido a partir da cultura indígena e seus significados, cuja vida é marcada por uma série de eventos traumáticos e rituais violentos, envolvendo uma mistura feita com ingredientes retirados da floresta. A personagem cresce em um ambiente de nudez em que a exposição é comum, mas também onde a morte, a paixão e a loucura se tornam o epicentro de um experimento. O texto está disponível na íntegra para leitura neste número do Correio2.
Associando as teorias de Freud e Lacan sobre o feminino, percebi o quanto é desafiador para uma mulher abordar o indizível desse gozo outro. O que me levou a considerar as narrativas literárias que, ao longo do tempo, escritas por homens, caracterizaram mulheres como bruxas e loucas. Significantes, muitas vezes, associados à força, à subversão e à singularidade. Mas que também podem estar associados à violência contra a mulher, ao demoníaco, ao medo e à superstição.
Como um homem que escreve personagens mulheres, me surgiu a pergunta: será que em minha escrita também não conteria, de algum modo, uma espécie de “acumulação primitiva” (Federici, 2017), de alguma forma implícita nas entrelinhas do que escrevi? O conceito de acumulação primitiva é um termo que surge inicialmente no livro O Capital, de Karl Marx. Silvia Federeci se apropria deste termo para demonstrar como questões ligadas a exclusão da mulher se reatualizam. Termo que também é utilizado para explicar as mudanças produzidas pelo capitalismo, nas dinâmicas de poder na cultura, envolvendo o trabalho assalariado e o trabalho reprodutivo da mulher principalmente no controle sobre o seu corpo.
Para me situar na escrita de mulheres, retomei as leituras sobre os debates feministas da época em que realizava pesquisas sobre temas correlatos aos Direitos Sexuais. Além das minhas participações em grupos de estudo e das interlocuções com o Núcleo Indisciplinar de Estudos sobre Mulher e Gênero (NIEM), no PPG de Ciência Política da UFRGS, minhas pesquisas tinham o objetivo de compreender como as feministas desconstruíram o conceito de gênero, denunciando de forma científica a opressão histórica e as relações de poder entre os sexos, ao mesmo tempo em que destacavam a evolução das lutas por direitos igualitários. Desconstrução que deu origem a um novo discurso normativo sobre a sexualidade, o que tornou possível outras articulações a partir dessa abertura.
Ao estudar as abordagens de Andréa Lisly Gonçalves (2006), Joan W. Scott (1995), Donna Haraway (2004), entre outras, pude acompanhar as discussões sobre os papéis atribuídos a homens e mulheres, e os sistemas que sustentam o conceito de gênero como uma construção social. O estudo revelou como a mulher foi historicamente subjugada por meio de mecanismos científicos, biológicos e culturais. Deparei-me com o real da diferença entre os sexos, sustentado por ideologias como o sexismo.
A desconstrução de gênero passa pela teorização de amplos sistemas de produção da diferença, o classismo (diferença de classe), o diferencialismo (diferença de raça) e o determinismo (determinação biológica). Teses que apontam para camadas de complexidade para abordar a problemática da escrita, levando-me a questionar o universal fálico, historicamente predominante na Literatura, ao mesmo tempo em que abre espaço para novas formas de representar as relações de gênero e a experiência feminina.
Ao longo de seu desenvolvimento, os estudos feministas se conectam aos primeiros momentos da história da escrita de mulheres. O livro O Riso da Medusa, de Hélène Cixous (1974/2010), que também surgiu durante as incursões pelos textos no grupo, chama a atenção para o movimento de escrita das mulheres na década de 1960. Nesse contexto, Cixous, ao lado de outras escritoras e de seu amigo Jacques Derrida, participou da criação do que hoje é conhecido como o Centro Feminista e de Estudos de Gênero da Universidade de Vincennes (Paris 8).
A escrita de autoria das mulheres na Literatura assume o protagonismo, finalmente dando voz a elas e quebrando os silêncios impostos por séculos de exclusão.
Eu falarei da escrita feminina: do que ela falará. E preciso que a mulher escreva sobre a mulher, e que faça as mulheres virem à escrita, da qual elas foram afastas tão violentamente quanto o foram de seus corpos, pelas mesmas razões, pela mesma lei, com o mesmo objetivo mortal. É preciso que a mulher se coloque no texto – como no mundo, e na história –, por seu próprio movimento (Cixous, 1974/2010, p. 25).
De qual maneira determinar, então, onde começa ou termina a linha que delimita as questões não resolvidas no debate da escrita de homens sobre mulheres, analisando as contradições e instabilidades que sustentam discurso literário, visto que a percepção do lugar subjetivo e dos contornos que bordejam o feminino encontra-se com o impossível?
Até mesmo os escritores mais sensíveis e atentos se deparam com a dificuldade em contornar o vasto campo que é a experiência feminina. Em meio a este intenso debate intelectual, político e subjetivo na forma com a qual homens escrevem sobre mulheres, destaco dois contos que talvez possam ajudar na a pensar nas contradições e aproximações na escrita de autoria de homens deixando emergir dos textos os dilemas dessa escrita.
Enquanto lia "Contos de Amor, de Loucura e de Morte", de Horácio (Quiroga, 2022), e "Insubmissas Lágrimas de Mulheres", de Evaristo (Conceição, 2024), fui refletindo na forma como cada um contorna o feminino. Diante da personagem Alicia, nas cenas do conto O Travesseiro de Penas, de Quiroga, e de Shirley Paixão, de Evaristo, a paixão e a loucura presentes nas histórias das personagens, que morrem de forma trágica — cada uma em seu conto e à sua maneira —, oferecem elementos para refletir sobre esta complexa trama.
Em O Travesseiro de Penas, Alicia se encontra em lua de mel com Jórdan, movidos pela paixão prematura do início da relação. A esposa ama Jórdan, mas ele é incapaz de demonstrar seu amor. Jórdan percebe a ausência de afeto e se preocupa ao vê-la adoecer acamada.
A partir da descrição da personagem feita pelo escritor em Alicia, somos confrontados com seus vazios interiores e os ecos de sua alma, enquanto a brancura de sua pele, que se torna progressivamente mais pálida, é ressaltada. Essa brancura me remete à mistura de todas as cores ou à representação da zona de ausência, algo característico no estilo de Marguerite Duras, como afirma Isabel Fortes (apud Gauthier 1974, p. 16). Elemento que carrega uma carga emocional, simbólica e densa, a brancura que parece ser uma marca visível e gradual da desintegração da personagem.
Alicia adoece, passando mais tempo na cama até morrer. Após a morte, enquanto Jórdan retira a roupa de cama em que Alicia esteve envolta durante seu padecimento, percebe uma mancha coagulada de sangue estranha no travesseiro. Perplexo, ele leva o travesseiro até uma mesa e, ao abri-lo com uma faca, se depara com um parasita que drenou todo o sangue e Alicia.
Para suscitar algumas questões sobre a forma como os homens escrevem sobre as mulheres, no conto de Quiroga, Alicia está imersa em um universo de dependência emocional e passividade, elementos que, no contexto da literatura masculina, podem ser vistos como uma reprodução dos papéis tradicionais de gênero escrito sobre as mulheres. Sua fragilidade, conforme abordada no conto, se alinha como a romantização da fragilidade, da submissão e do sacrifício feminino, que é uma característica recorrente nas representações de mulheres em narrativas literárias dominadas por uma perspectiva patriarcal.
Já no conto de Shirley Paixão, a história inicia com a descrição da narradora de que Shirley lhe conta sobre um corpo caído e ensanguentado no chão, daquele que teria sido o homem dela. Frente àquele corpo, nenhuma paixão sentiu. O conto de Shirley com o marido é preenchido por suas filhas biológicas e filhas biológicas dele. Mais tarde se revelará o abuso sexual cometido pelo pai contra a filha.
A cena é presenciada por Shirley, que encontra uma barra de ferro usada como tranca em uma janela, e diz: “Foi só levantar e abaixar a barra que o animal caiu estatelado”. Buraco que se abre e esvazia o sentido tanto pela cena do estupro presenciado por Shirley, quanto pelo golpe por ela desferido. Contorno desenhado pelo desespero, gritos, dor, sofrimento e a sensação de estrangulamento das “vítimas da violência doméstica” (Gomes, 2013).
Conceição Evaristo explora os conflitos internos das mulheres em face de relações abusivas e desigualdade social que recai sobre o aprisionamento ao homem que seria dela, e traz em sua escrita a marca de uma narrativa de mulher sobre o feminino. Por outro lado, Horácio Quiroga mergulha a personagem nos medos irracionais e no desconhecido, simbolizados por objetos aparentemente simples, como o travesseiro, que se torna elemento de aprisionamento do amor.
A representação literária na escrita de homens sobre mulheres revela uma complexa rede de tensões e contrastes. A escrita masculina sobre o feminino frequentemente se insere em um espaço onde o amor, a loucura e a morte se entrelaçam, moldando o comportamento das protagonistas, nas quais a opressão social e os conflitos das relações de gênero se manifestam por meio da performatividade com a qual a diferenciação biológica, o amor romântico, a religião/crença e o familismo são reatualizados na escrita.
Seria possível ultrapassar a linha que separa a história do sexismo, ou seja, avançar pelo caminho da desconstrução promovida pelos estudos feministas, fazendo interlocuções entre Psicanálise e Literatura, e a escrita de homens e de mulheres para encontrar espaços de diálogo e de trabalho das questões não resolvidas e do embate desse devir político?
Embora haja semelhanças nos temas tratados, as narrativas de mulheres e de homens, ambas muito interessantes, revela as contradições no discurso e no espaço literário, provocando o debate sobre a representatividade e padrões produzidos na Literatura que determinaram a cultura. A Psicanálise e Literatura abrem um espaço de disputa, trazendo à tona questões de poder, mas também podem representar uma possibilidade, frente à subjetividade e às formas de contornar o impossível do feminino.
Finalmente retomo a minha pergunta inicial na perspectiva do meu recorte, e sobre a escrita de mulheres para tentar escrevê-la de uma outra forma: qual seria a letra que o feminino desenha?
A partir da complexidade temática, tenho para mim que as perguntas que me fiz estão muito distantes de ser respondidas, se é que uma resposta seja possível e necessária. Ainda assim, algo muito importante surgiu: questões que me levaram ao trabalho.
Referências bibliográficas:
CIXOUS, Hélène. O riso da medusa e outros ensaios (1974). Tradução de Ana Gabriela Macedo e Maria Luísa Jardim. Lisboa: Editions Cotovia, 2010.
CONCEIÇÃO, Evaristo. Insubmissas Lágrimas de Mulheres. 7 ed. Rio de Janeiro: Malê, 2024.
COSTA, Ana. Clinicando: a escrita da clínica psicanalítica. Porto Alegre: APPOA, 2008.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (Coletivo Sycorax, trad.). São Paulo: Editora Elefante, 2017.
FORTES, Isabel. Marguerite Duras e a escritura do feminino. Psyche (São Paulo), São Paulo, v. 11, n. 21, p. 161-174, dez. 2007. Acesso em 22 fev. 2025.
GOMES, Carlos Magno. Marcas da violência contra a mulher na literatura. Revista Diadorim / Revista de Estudos Linguísticos e Literários do Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Volume v. 13, julho 2013. [http://www.revistadiadorim.letras.ufrj.br]
GONÇALVES, Andréa Lisly. História & Gênero. 1 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.
HARAWAY, Donna. Gênero para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra.Cadernos Pagu, Capinas, v. 22, n., p.241-246, jun. 2004. Acesso em: 22 fev. 2025.
NASCIMENTO, Michelle Vasconcelos Oliveira do. Escrever como homem ou escrever como mulher?: relações entre a autoria feminina e o cânone literário. Acesso em: 29.03.2025.
PARISOTTO, L. Diferenças de gênero no desenvolvimento sexual: integração dos paradigmas biológicos, psicanalítico e evolucionista. Revista de Psiquiatria, 25 (1): 75-87, 2003.
QUIROGA, Horácio. Contos de amor de loucura e de morte. Trad. De Renato Roschel e Adriana Zoudine. – São Paulo: Instituto Mojo, 2022.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, (2), p.71-99, jul/dez. 1995.
1 Trata-se do grupo temático “Psicanálise e Literatura: borda e litoral na escrita de mulheres”, coordenado por Carla Sei e Isadora Machado.
2 Ver: VIJALES, F. A tribo das mulheres Yaraí. Nesta edição.
Fabrício Vijales é psicanalista. Email. vijalesfabricio@gmail.com



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